terça-feira, 27 de maio de 2014




Anda por aí um novo Marx



Mr. Darcy não é de muitas falas e faz tudo para manter uma figura misteriosa, mas há algo sobre ele que toda a gente sabe: o seu rendimento anual é desde a morte do seu pai e continuará a ser até à sua própria morte de mais de 10 mil libras. É esse rendimento garantido, uma verba astronómica inalcançável pela grande maioria, que lhe permite uma vida inteira sem trabalhar e que o torna uma oportunidade única de ascensão social que nenhuma jovem pretendente de mente sã deve rejeitar. Mr. Darcy é uma personagem criada por Jane Austen em 1813 e representa a classe alta da sociedade britânica do início do século XIX, onde o mérito e o esforço de cada um estavam longe de ser vistos como passaportes para o sucesso financeiro.

Mr. Gates não é uma personagem de um livro. Criou a Microsoft em 1977 e acabou por se tornar o homem mais rico do mundo. Nos últimos anos, parece estar a fazer tudo o que pode para ficar com menos dinheiro. Deixou de trabalhar, vendeu quase toda a sua participação na Microsoft e entregou 29 mil milhões de dólares à sua fundação. Mas, mesmo assim, a fortuna não o deixa. Está avaliada actualmente em 79 mil milhões de dólares, um valor que é 16 mil milhões mais elevado do que era há dois anos.

Mr. Darcy e Mr. Gates têm muitas diferenças, mas a sua grande semelhança — a capacidade que têm de ficar sempre cada vez mais ricos, seja o que for que decidam fazer das suas vidas — é o tema do momento no debate económico internacional.

A culpa é de Thomas Piketty. Este economista francês de 42 anos lançou no ano passado o livro Capital no Século XXI (a edição portuguesa será publicada em Outubro pela Temas e Debates). A obra trouxe para o centro da discussão nos Estados Unidos e na Europa o problema da desigualdade, lançando um desafio: será o mundo actual de supergestores pagos a peso de ouro e de empreendedores tecnológicos que se tornam multimilionários antes dos 30 anos apenas um regresso a uma sociedade ao estilo da Belle Époque da Europa na viragem do século XIX para o século XX, em que alguns, muito poucos, têm quase tudo, façam o que fizerem? Thomas Piketty responde que sim, e a forma como o fez, num livro de quase 600 páginas mas com uma escrita simples e atraente, transformou-o num líder de vendas na Amazon e, ao mesmo tempo, no alvo de todo o tipo de elogios e críticas. “Maior livro da última década” e “brilhantemente revolucionário” ou “lengalenga ideológica bizarra” e “espantosamente ignorante” foram alguns dos adjectivos usados.

Uma coisa é certa, o livro de Piketty não é obra de uma inspiração repentina trazida pelo drama da crise financeira internacional ou pelos protestos de rua em que o movimento Occupy Wall Street alerta para as diferenças entre os 1% mais ricos e os 99% mais pobres. Capital no Século XXI é o resultado final de um trabalho de investigação estatística realizado ao longo de mais de uma década em conjunto com outros economistas — em especial, Anthony Atkinson, da Universidade de Oxford, e Emmanuel Saez, da Universidade de Berkeley. Esta equipa tentou enfrentar o grande problema com que todos os que se dedicaram a estudar a evolução da distribuição da riqueza se têm deparado: encontrar dados comparáveis para um período de tempo suficientemente vasto para que seja possível retirar conclusões sobre tendências de longo prazo. Recorreram aos dados das administrações fiscais de duas dezenas de países, incluindo Portugal, e ficaram com um retrato, até aí muito parcialmente tirado, sobre a evolução da desigualdade no mundo ao longo dos últimos séculos. Em França desde o século XVII, nos Estados Unidos desde o início do século XX, em Portugal desde 1936. Com estes dados, passou a ser possível estudar a evolução das desigualdades de uma forma que antes pura e simplesmente não era possível.

E é por isso que Thomas Piketty se atreve agora a pôr em causa a grande referência do século passado na análise das tendências do crescimento económico e da distribuição de rendimentos, Simon Kuznets. O economista russo naturalizado norte-americano, que Piketty refere sempre em primeiro lugar quando o questionam sobre quais são as suas maiores influências, usou dados recolhidos para o período de 1913 até 1948 e retirou conclusões bastante optimistas em relação à evolução da desigualdade: o desenvolvimento económico conduzia inevitavelmente a uma redução das disparidades na distribuição do rendimento. A curva de Kuznets, raramente posta em causa durante as últimas décadas, assume que, numa fase inicial de desenvolvimento de um país, a desigualdade tende a aumentar, uma vez que a procura por trabalhadores qualificados faz os salários destes aumentar muito mais do que o resto da população, mas conclui que, numa fase mais avançada de desenvolvimento, a desigualdade regride à medida que a população se torna mais qualificada. Isto é, o crescimento e o desenvolvimento acabam sempre por limitar as desigualdades.

O problema com esta conclusão, diz Piketty, armado com os seus novos dados estatísticos, é que Kuznets foi enganado pelas condições particulares das décadas que estudou. Entre 1913 e 1948, o mundo passou por duas Grandes Guerras, períodos de enorme inflação, aumentos de impostos e fortalecimento dos Estados sociais. Todos estes factores externos contribuíram para diminuir as desigualdades e alteraram o que seria a sua tendência natural, defende o economista francês, que não tem dúvidas de que os números agora conhecidos “desafiam radicalmente a visão optimista [de Simon Kuznets] sobre a relação entre o desenvolvimento económico e a distribuição da riqueza”.

As comparações com Marx deixam Piketty desconfortável Corbis/Pablo Garrigós/Demotix/Corbis
Uma nova teoria do capitalismo

Os dados apresentados por Thomas Piketty mostram realmente uma história bem diferente da de Kuznets. Nos séculos XVIII e XIX, as sociedades da Europa ocidental eram extremamente desiguais. O economista recorre mesmo à literatura para complementar os dados que tem sobre esta época. As descrições de Jane Austen de uma alta sociedade inglesa obcecada com os dotes e as heranças na viragem para o século XIX ou a crítica de Honoré de Balzac ao poder financeiro na burguesia francesa da primeira metade do mesmo século ajudam a tornar ainda mais clara a imagem de uma sociedade em que o património herdado ditava, quase por completo, a sorte de cada um.

Esta enorme diferença na distribuição de rendimentos persiste praticamente inalterada mesmo com a Revolução Industrial, as suas inovações tecnológicas e o aparecimento de uma população assalariada de grande dimensão. Apenas as duas Grandes Guerras, intercaladas pela Grande Depressão, conseguiram quebrar o ciclo da desigualdade. A destruição física de muitos dos activos dos mais ricos, a situação caótica vivida nos mercados financeiros e, depois, a resposta política baseada num fortalecimento das políticas sociais, levou a que a desigualdade se reduzisse aos anos 1970.

No entanto, desde os anos 1980 até agora, assiste-se a um regresso em força da desigualdade. Nos Estados Unidos, o país onde esta tendência foi mais evidente, a parte do rendimento total que é detida pelos 1% mais ricos mais do que duplicou entre 1981 e 2012, quase chegando aos 20%. Essa pequena parte da população ganha tanto como a metade mais pobre. Este resultado é muito semelhante àquele que se registava na Europa antes da I Grande Guerra, no auge da desigualdade. Nas economias europeias, o agravamento da desigualdade não foi tão acentuado, mas também é notório nas últimas décadas.
Com estes dados na mão, Thomas Piketty sentiu-se pronto para arriscar uma nova teoria para a evolução da desigualdade. Pode-se mesmo dizer uma nova teoria do capitalismo. Uma teoria que não partilha o optimismo de Kuznets de que, com o desenvolvimento económico, a distribuição de rendimentos tende a corrigir-se. “Não há qualquer processo natural e espontâneo que previna que forças desestabilizadoras e promotoras de desigualdades possam prevalecer permanentemente”, afirma.

Pelo contrário, o que o livro de Piketty diz é que aquilo que normalmente acontece é a taxa de retorno do capital (o que se consegue obter de lucro em percentagem do capital investido) ser mais alta do que a taxa de crescimento económico. E que quando isso acontece, não havendo qualquer intervenção exterior, o que temos é um aumento da desigualdade na distribuição de rendimentos.

A fórmula, a mais discutida no debate económico dos últimos meses, escreve-se como r>g, em que r é a taxa de retorno do capital e g é a taxa de crescimento da economia. A tendência de longo prazo, diz Piketty, é a de que r supera g. Durante os séculos XVIII e XIX, r manteve-se persistentemente entre 4% e 5% (as 10 mil libras garantidas anualmente por Mr. Darcy com as terras que herdou), enquanto g registou uma média próxima de zero.

Entre a I e a II Grande Guerra, r diminuiu fortemente, e, nos anos 50 e 60 do século XX, g subiu de forma excepcional, reduzindo a desigualdade. Mas nas últimas três décadas, apesar de o crescimento da economia não ser zero, o retorno obtido pelo capital voltou a ser sistematicamente mais alto, diz o livro. E o que isto significa é que aquilo que torna algumas pessoas mais ricas tem tendência a crescer mais rápido do que aquilo que torna a maior parte das pessoas mais ricas.

Caso esta tendência se mantenha, aquilo a que se irá assistir é a uma cada vez mais desequilibrada distribuição dos rendimentos. Uma sociedade onde os muito ricos vão ficando mais ricos, perpetuando esta situação através das heranças, até a um ponto em que o modelo económico capitalista e mesmo o regime democrático podem ser colocados em causa.

Mas se não é optimista como Kuznets, Thomas Piketty também não vê, como Karl Marx, o capitalismo a caminhar fatalmente para a sua destruição. Marx é aliás um nome incontornável quando se fala de Piketty. À direita acusam-no de ser um “novo Marx”, a revista The Economist diz que é um “Marx moderno” e a esquerda critica-o por estar muito longe de ser qualquer espécie de Marx. O economista francês parece mostrar ele próprio um certo desconforto na sua relação com o economista alemão do século XIX. Por um lado, o nome que deu ao seu livro — Capital no Século XXI — é uma evidente referência ao O Capital publicado a partir de 1867. Por outro lado, desde que o livro começou a criar polémica nos Estados Unidos, Thomas Piketty tem feito questão de, em diversas entrevistas, distanciar-se o máximo possível de Karl Marx, ao ponto de chegar a dizer que não conseguiu ler O Capital até ao fim.

As diversas referências que são feitas a Marx no livro — é o segundo economista mais citado, apenas atrás de Kuznets — mostram acentuadas diferenças. A teoria-base de Piketty de que o retorno de capital tende a ser maior que o crescimento económico surge em completa oposição à ideia de Marx de que o retorno do capital caminharia para zero, concretizando a crise no modelo capitalista que o acabaria por destruir.

Piketty não acredita nesse cenário e nem o deseja. Diz apenas que o capitalismo precisa de encontrar soluções para evitar esta escalada da desigualdade e sugere-as.

A principal é um aumento muito acentuado da carga fiscal sobre os mais ricos. O livro sugere a aplicação de uma taxa de imposto de 80% sobre os rendimentos anuais acima de 500 mil dólares (cerca de 365 mil euros) e uma taxa de 10% sobre a riqueza, que torne mais difícil a perpetuação e aprofundamento das desigualdades. Para evitar fugas de capital de uns países para os outros, Piketty diz que a solução tinha de ser implementada à escala mundial.

O livro de Thomas Piketty caiu como uma bomba no meio do debate político nos EUA. E o economista francês passou, de um momento para o outro, de completamente desconhecido do grande público para protagonista central dos principais debates políticos e económicos. De tal forma que a expressão “rockstar economist”, antes reservada a alguns poucos prémios Nobel, passou a parecer ter sido feita exclusivamente para ele.

Nos Estados Unidos, o impacto do livro de Thomas Piketty foi tão grande porque trata daquele que é, desde o início da crise financeira internacional, um dos principais temas de discussão política entre Democratas e Republicanos. A esquerda norte-americana apresentou o livro como sendo a prova definitiva de que a desigualdade na distribuição dos rendimentos é o grande problema da sociedade e da economia dos Estados Unidos, usando-o como argumento para defender uma subida dos impostos sobre os mais ricos e um incremento dos programas sociais.

Paul Krugman foi dos mais elogiosos, dizendo que o livro “destruía um dos mitos mais queridos dos conservadores, a ideia de que estamos a viver numa meritocracia em que a grande riqueza é conquistada e merecida”. E Barack Obama aproveitou o momento em que as conclusões de Piketty estavam a dominar as notícias para prometer um combate feroz à desigualdade na fase final do seu segundo mandato.

A direita norte-americana respondeu com idêntico entusiasmo, mas no sentido inverso. Martin Feldstein, conselheiro económico de Ronald Reagan, diz que “os números não batem certo” e que, para combater a pobreza, “não são úteis os impostos confiscatórios sobre o rendimento e a riqueza que o senhor Piketty recomenda”.

Na Europa, onde Piketty afirma que 1% mais ricos detêm cerca de 10% dos rendimentos (cerca de metade dos Estados Unidos), o livro não teve um impacto tão forte e imediato. A edição original do livro em francês recebeu no país de origem do economista uma aceitação moderada da crítica e uma posição discreta nos rankings de vendas. Isto aconteceu, suspeita-se, porque o aumento da desigualdade na Europa tem sido mais moderado e porque o debate sobre a desigualdade e sobre a forma de combatê-la está numa fase bem diferente da dos Estados Unidos. Em França, François Hollande já avançou, recuando depois parcialmente, para uma taxa de imposto sobre os rendimentos dos muito ricos de 75%, uma medida para a qual o próprio Thomas Piketty contribuiu decisivamente como conselheiro do Partido Socialista francês.

No entanto, após o sucesso norte-americano, o livro também começou a ser falado no país de Piketty. Algumas das reacções mais fortes vieram dos movimentos situados mais à esquerda. O filósofo Geoffroy de Lagasnerie criticou a visão de Piketty de que é possível salvar o capitalismo, reduzindo as desigualdades através de impostos. “Todo o projecto do livro pode ser resumido assim: atenuar as desigualdades no património para voltar a dar um sentido às desigualdades nos salários, para relegitimar e perpetuar estas desigualdades assimiladas como desigualdades de mérito. Trata-se de encontrar um modo de ‘tornar aceitável’ o mundo capitalista”, escreveu no Libération.

Em Portugal, o livro teve até agora um impacto praticamente nulo no debate político. Isto acontece apesar de os números sobre o país mostrarem que é um dos que registaram um maior aumento do peso dos rendimentos dos mais ricos durante as últimas três décadas. Em 1981, os 1% mais ricos obtinham 4,3% do rendimento, um dos valores mais baixos entre os países analisados, mas que passou para 9,8% em 2005, o último ano para o qual são conhecidos dados. A subida de 5,5 pontos percentuais neste indicador é a terceira maior entre os países analisados, atrás dos 11,1 pontos registados nos EUA e dos 6,3 pontos do Reino Unido. No entanto, é importante notar que, durante os anos anteriores, entre 1974 e o início da década de 80, o peso dos 1% mais ricos no rendimento caiu bastante, um efeito da revolução.

Para os anos a seguir a 2005, não se consegue saber o que aconteceu em Portugal neste indicador. Os dados relativos à distribuição de rendimentos que são conhecidos são os publicados pelo Instituto Nacional de Estatística com base nos inquéritos aos rendimentos. Os dados do livro de Piketty, recolhidos pelo economista Facundo Alvaredo, são retirados da informação de pagamento de impostos produzida pela administração fiscal.

O INE opta por não publicar informação referente ao rendimento dos 1% mais ricos da população, alegando que, devido à dimensão da amostra, esses dados poderiam não ter a qualidade estatística necessária. Faz apenas comparações entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres. Como explica Carlos Farinha Rodrigues, um especialista em questões relacionadas com a distribuição de rendimento, “até 2010, houve uma redução sustentada da desigualdade, que a partir daí começa a subir”. Em 2012, o índice de Gini (que mede a desigualdade nos países) registou uma ligeira descida, apontando para uma redução da desigualdade na distribuição dos rendimentos, mas, em contrapartida, o rácio entre os rendimentos dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres voltou a subir.

Mas se continua ausente do discurso político, Capital no Século XXI tem captado a atenção da comunidade académica portuguesa, gerando diversos elogios, mas também críticas. Nuno Teles, investigador do Centro de Estudos Sociais, fala de uma “valiosa análise de Piketty”, mas considera que deve ser um “ponto de partida para uma revalorização de muito do trabalho que tem sido feito na economia política”. O economista critica o livro por dar pouco relevo ao papel que o Estado pode desempenhar na criação de condições para um maior crescimento, que evitaria o aumento da desigualdade. “A proposta de taxação do capital inscreve-se numa receita que procura resolver os problemas do capitalismo ‘ex-post’ através da tributação e aposta quase só na qualificação e educação ‘ex-ante’ como mecanismo de promoção do crescimento económico, o que é manifestamente insuficiente, como se pode ver pelo nosso país”, diz o economista.

José Tavares, professor na Universidade Nova de Lisboa, tem outro tipo de críticas. Um deles é o facto de não se considerar que os pobres da actualidade sejam agora bastante diferentes dos do passado. “O grande benefício da inovação e dos mercados, nos últimos 200 anos, tem muito mais que ver com o aumento do rendimento dos mais pobres, que foi surpreendente e notável nestes 200 anos. Se esse aumento do nível de vida não tivesse acontecido, as profecias de O Capital — o primeiro, o de Marx — teriam mudado o mundo”, afirma.
Este economista assinala ainda que “a ascensão de dezenas de milhões de pessoas dos países em desenvolvimento a uma ‘classe média mundial’ estão fora da história de Piketty” e que “a desigualdade nos países ricos, hoje, tem muito que ver com a globalização e com a tecnologia”. “É impossível esquecer novos multimilionários, das Microsofts americanas às Alibabas chinesas e às Skypes bálticas, que nada têm que ver com heranças”, afirma.

No livro, Piketty reconhece que, embora a desigualdade actual nos EUA “seja quantitativamente tão extrema como na velha Europa da primeira década do século XX, a estrutura dessa desigualdade é claramente diferente. Antes, os ganhos de capital explicavam a totalidade do rendimento dos mais ricos, agora explicam apenas um terço. O livro destaca sobretudo o aparecimento dos enormes salários do gestores das grandes empresas para explicar esse fenómeno.

No entanto, Piketty responde à crítica colocando em causa a forma como se mede um mérito que coloque os salários destes gestores tão acima da média. E lembrando que seja como for que ela foi conquistada, essa riqueza vai tender a perpetuar-se. Ou seja, os herdeiros dos milionários gestores e empreendedores de hoje vão ajudar a criar uma sociedade em que cada vez mais os mais ricos vivem das rendas. E onde os sucessores de Mr. Gates se tornam cada vez mais parecidos com Mr. Darcy.  

Bancos centrais "têm de ser agressivos" para evitar "armadilha da baixa inflação"

Publicado no Jornal de Notícias de 27 de Maio de 2014





O prémio Nobel de Economia de 2008, Paul Krugman, defendeu, esta terça-feira, em Sintra, que os bancos centrais "têm de ser agressivos" e "não apenas prometer" para evitar a "armadilha de baixa inflação", como aconteceu no Japão.
foto Julio Cesar Aguilar/AFP
Bancos centrais "têm de ser agressivos" para evitar "armadilha da baixa inflação"
Paul Krugman

"Os bancos centrais têm de não apenas prometer, mas precisam de agir efetivamente e de ser agressivos", disse o economista norte-americano numa conferência internacional organizada pelo Banco Central Europeu (BCE), que decorre em Sintra.
"Se esperam que haja um aumento da inflação, esse aumento tem de ser suficientemente elevado para produzir pleno emprego", considerou ainda, interrogando se a queda dos preços é temporária ou permanente.

O Nobel da Economia considerou que os bancos centrais "estão em negação" ao acreditarem que o pleno emprego é possível com uma inflação de 2%, defendendo que essa taxa "tem de ser maior".

Paul Krugman tem vindo a defender uma inflação mais alta na zona euro, considerando que se deve abandonar a política de baixa inflação e questionando a "misteriosa doutrina" dos 2%. O BCE tem como mandato manter a inflação próxima, mas abaixo deste valor no médio prazo.

"Se os 2% era uma boa meta nos anos 1990, hoje já não é", afirmou o Nobel da Economia.

Krugman tem afirmado também que a zona euro está numa armadilha de liquidez, uma vez que a procura privada é fraca e que mesmo com taxas de juro próximas de zero as despesas estão aquém do necessário para o pleno emprego.
Na sua intervenção, Paul Krugman considerou que há semelhanças entre a situação da zona euro e a que o Japão vive há vários anos, contestando a posição da instituição de Frankfurt.

Recordando que o presidente do BCE, Mario Draghi, tem referido que "a deflação é uma queda prolongada dos preços em diferentes bens, setores e países" e que a instituição não vê isso em qualquer país, Krugman ripostou: "Bem, também não vimos isto no Japão e, no entanto, consideramos que eles tiveram um problema de deflação".

Para o economista norte-americano, "a melhor maneira de lidar com este problema [deflação] é não nos colocarmos lá em primeiro lugar", acrescentando que é preciso "um processo de reponderação".

A deflação é um problema quando se torna persistente, já que a descida continuada dos preços faz com que os consumidores adiem as decisões de consumo, na expectativa de que os preços caiam ainda mais. Ao mesmo tempo, também as empresas adiam as decisões de investimento, o que tem impacto no crescimento económico e no desemprego, referiu.

Já durante o debate com a audiência, o antigo economista-chefe do BCE Otmar Issing considerou que se há uma questão de credibilidade em relação à meta da inflação, talvez o melhor fosse descer o referencial em vez de o subir, estando as taxas tão baixas.

Além disso, o economista alemão contestou a ideia de que não há flexibilidade salarial na Europa.

Em resposta, Krugman afirmou que cortes salariais "quase só ocorreram no setor público", e não no privado, durante esta crise. Com exceção da Grécia, disse, não viu cortes salariais nominais em outros países.

Por outro lado, ainda na sua intervenção, Paul Krugman considerou que a "redução da população ativa nos Estados Unidos, zona euro e Japão é uma política de austeridade natural", reiterando que a demografia é "uma questão-chave no mundo desenvolvido, dada a redução significativa da população ativa".

A taxa de inflação na zona euro fixou-se nos 0,7% em abril, contra 0,5% em março, mas um valor inferior aos 1,2% registados há um ano.

Um aumento da meta da inflação da zona euro é contestada sobretudo na Alemanha, devido aos fenómenos de hiperinflação que experienciou na década de 1920.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Thomas Piketty e O Capital no Século XXI
O livro do francês Thomas Piketty sobre a história do capital e sua repartição passou a ser o mais vendido na Amazon. Encontrou mecanismos que explicam a desigualdade económica e o desenvolvimento de uma sociedade de herdeiros.

REUTERS/Charles Platiau
I. O que podemos saber sobre a repartição da riqueza e a sua evolução desde que existe o capitalismo? Se é certo que ela é sempre desigual, e se é certo que existem dados seguros para a estudar, pelo menos, desde o século XVIII em França, verificamos que essa desigualdade tem vindo a diminuir nos últimos 200 e tal anos? Ou, pelo contrário, tem vindo a aumentar? Como devemos aferir a justiça ou injustiça da repartição desigual da riqueza no quadro do capitalismo? O que nos diz ela sobre o próprio capitalismo como sistema de produção e distribuição de riqueza? Estas são as perguntas fundamentais do livro de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.
Quando o li, há umas semanas, estava ainda longe de imaginar o brutal impacto que ele viria a ter. Apesar das quase 700 páginas da edição inglesa, e das quase 1000 da edição francesa, atingiu recentemente a surpreendente condição de ser o mais vendido na Amazon. Paul Krugman chamou-lhe “o livro da década”. Stiglitz, Solow, Milanovic e outros economistas de topo foram igualmente elogiosos. Escreveram-se entretanto dezenas de recensões. Todos os dias aparece uma nova, ou mais do que uma. As recensões mais recentes são quase todas de economistas de direita que procuram pôr em causa as principais teses de Piketty. Outras são igualmente críticas, embora venham de economistas de esquerda. A estes, Piketty parece porventura demasiado favorável ao capitalismo; àqueles, demasiado hostil. De facto, a sua concepção do capitalismo implica, por um lado, prezá-lo como um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem-estar, em suma: de desenvolvimento — mas, por outro, implica condená-lo como um sistema que tende a repartir a riqueza de um modo demasiado desigual e, na verdade, injusto e anti-democrático.

Felizmente, Piketty não escreve apenas para economistas, nem sequer apenas para especialistas das diversas áreas das ciências sociais e humanas. “A repartição da riqueza é uma questão demasiado importante para ser deixada apenas a economistas, sociólogos, historiadores e filósofos. Ela interessa a toda a gente, e ainda bem”, sublinha na introdução. Por esta razão, não há praticamente nada no livro que não esteja explicado de forma bastante elementar e clara — de tal forma, aliás, que o volumoso calhamaço se lê quase como um romance. 

II. Para ser mais exacto, o volumoso calhamaço lê-se como um livro de história económica e, em grande medida, é um livro de história económica. Esta é provavelmente uma das razões por que muitas das recensões escritas por economistas são tão negativas e, em muitos casos, distorcem tão gravemente as teses de Piketty (nalguns casos, isso explica-se também pelo facto de os recenseadores fingirem ler um livro que não leram). Alguns dos economistas que escreveram sobre o livro pressupuseram que as teses de Piketty não poderiam não pretender ter o estatuto de verdades a priori de um modelo económico — quando, na verdade, pretendem ter apenas o estatuto de verdades históricas e, portanto, empíricas; outros perceberam bem a sua natureza apenas histórica e empírica — mas consideraram que, precisamente por isso, o livro não prova o que pretende provar, sobretudo quando fala do futuro.

Mas façamos a pergunta que todas as recensões têm feito e devem fazer: estamos, de facto, perante um livro que diz algo de fundamentalmente novo e muda a nossa forma de olhar para o mundo? um livro que faz avançar decisivamente a nossa compreensão do mundo em que vivemos e que, por isso, interessa, não apenas a economistas, e não apenas a sociólogos, historiadores e filósofos, mas, de facto, a toda a gente?

O livro é uma história do “capital”, como o título indica. “Capital”, para Piketty, tem um sentido lato (na verdade bastante conforme com o uso comum do termo), e significa o mesmo que “património”, ou “riqueza”: designa todo e qualquer “activo” (financeiro ou não financeiro, produtivo ou não produtivo) em que seja possível investir e que possa, por isso, proporcionar um retorno, seja este um retorno explícito (sob a forma, por exemplo, de rendas, dividendos, juros, ou lucros), seja um retorno implícito (como, por exemplo, a renda de habitação que não se paga quando se tem casa própria). Segundo Piketty, só este conceito de capital (nada usual na ciência económica) permite compreender o capitalismo e estudar a desigualdade económica no sistema capitalista — só esse conceito de capital permite desenvolver os métodos e explorar as fontes que conduzem à compreensão dos mecanismos da distribuição desigual do património, isto é, dos mecanismos que explicam a desigualdade não apenas (e não tanto) como um fenómeno resultante de diferenças salariais (ou de rendimentos do trabalho) quanto de diferenças na repartição da riqueza (e, portanto, no retorno do capital).

Ora, a novidade do livro está precisamente na sua tese principal sobre esses mecanismos. Podemos dividi-la em dois pontos fundamentais e formulá-la deste modo:

(1) A história económica dos últimos 220 anos em mais de 20 países mostra que o capitalismo é um sistema de produção que, excepto em circunstâncias muito particulares, gera enormes desigualdades na repartição da riqueza — e isso fundamentalmente porque, nesse sistema, a “taxa de rendimento do capital” (r) tende a ser, em média e no longo prazo, maior do que a “taxa de crescimento da produção” (g), ou seja, porque, tendencialmente (ou segundo um padrão que se verifica no longo prazo), r > g;

(2) o que isso significa é que o capitalismo foi sempre — e continua a ser hoje, na época da sua maior globalização e financiarização — um capitalismo patrimonial, isto é, um sistema de produção e distribuição de rendimento que, a partir de uma maior ou menor desigualdade inicial, gera sempre, de forma endógena e progressiva, acumulação e concentração de património (ou capital) nas mãos de uma percentagem muito minoritária de famílias. No longo prazo e na medida em que r > g (ou seja, na medida em que “as pessoas com riqueza herdada só precisam de poupar uma porção do seu rendimento sobre o capital para que este capital cresça mais depressa do que a economia como um todo”), uma sociedade capitalista acaba sempre por ser uma “sociedade de herdeiros”.

O ponto (1) é novo na teoria económica porque é nova a ideia de que a história do capitalismo revela o padrão r > g e, portanto, é nova a tese de que este padrão é, na verdade, o principal mecanismo que explica por que razão o capitalismo gera desigualdades de forma endógena. Esta ideia de um “mecanismo” — como mecanismo endógeno e historicamente comprovado — tem uma força imensa. O tempo dirá se é ou não descabido fazer a seguinte analogia: tal como a força e a novidade do pensamento de Darwin consistiu, não na descoberta da evolução das espécies, mas antes na descoberta de um mecanismo (a “selecção natural”) que explicava a evolução das espécies e a tornava plausível, assim também a força e a novidade do pensamento de Piketty consiste, não certamente na descoberta da desigualdade, mas antes na descoberta do mecanismo que a explica e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo.

O ponto (2) é novo na teoria económica porque, nas últimas décadas, os estudos sobre as desigualdades pressupuseram, no fundo, uma sociedade de empreendedores e não de herdeiros. Por isso, tais estudos trataram essencialmente das desigualdades no rendimento do trabalho (por exemplo, da diferença entre os salários do 1% mais bem pago e os salários dos restantes 99%). Não contaram com o r = “taxa de rendimento do capital”, pois não calcularam o valor de β = a ratio entre o capital acumulado e a produção anual de um país (PIB). Segundo os números de Piketty e do vasto número de economistas que com ele colaboram, num país do primeiro mundo o capital acumulado (i.e. o património ou riqueza) tende a ser cerca de 600% do PIB, ou seja, um tal país precisa de 6 anos para produzir um rendimento equivalente à riqueza que já foi acumulada e que, portanto, já existe como património ou capital (basicamente privado) desse país. O principal factor do progressivo aumento das desigualdades num país deste tipo é a taxa de retorno desse capital acumulado, ou seja, o facto de essa taxa de retorno permitir níveis de poupança (s) que o rendimento do trabalho não pode proporcionar. Portanto, o capitalismo é, de facto, o sistema do “empreendedor” — mas todo o empreendedor, se tem sucesso, acaba por ter rendimentos sobre o seu capital (como todo o “rentista” do século XVIII ou XIX) e, dessa forma, acumular um património que tenderá a ser legado e a crescer na geração seguinte. O mecanismo que explica a desigualdade e que a mostra ser intrínseca ao capitalismo é um mecanismo de acumulação patrimonial, portanto um mecanismo pelo qual, como diz Piketty, “o passado tende a devorar o futuro”: não só o rendimento sobre o capital tende a crescer em percentagem em relação à totalidade do rendimento nacional, como as fortunas que eram maiores no passado tendem a tornar-se ainda maiores no futuro.

Depois de duas grandes guerras que, no século XX, destruíram muita riqueza — e às quais se sucederam mais de 30 anos de recuperação económica e tecnológica, 30 anos dourados de criação de estados sociais e de políticas fiscais fortemente redistributivas, bem como de crescimento populacional —, os países mais desenvolvidos  têm vindo a regressar (desde o início dos anos 80) ao baixo crescimento e, segundo os números de Piketty (portanto, segundo dados empíricos), à inequívoca manifestação do padrão r > g. Os dados mais recentes (apresentados por Piketty já depois da publicação do livro) confirmam que,  no tempo de “estagnação secular” em que os países desenvolvidos parecem encontrar-se hoje, já nos encontramos numa situação em que r tende a situar-se, em média, nos 4 ou 5% (com elevadas taxas de poupança) e g tende a não passar de 1 ou 1.5% (máximo 2.5%). De forma que caminhamos a passos largos para níveis de desigualdade muito semelhantes aos da Belle Époque. Para dar apenas dois exemplos: (a) nos Estados Unidos, em 2010, 70% do capital (ou riqueza acumulada) pertencia a 10% da população e 35% a apenas 1% da população — ora, se os EUA estiverem, de facto, a caminho de níveis de desigualdade como os da Belle Époque, então dentro de algumas décadas 90% do capital (ou riqueza acumulada) pertencerá a 10% da população e 50% a apenas 1% da população; (b) em França durante a Belle Époque, a riqueza herdada representava cerca de 90% da riqueza total; desde 1914 até 1970 (por efeito das duas grandes guerras, mas também de políticas fortemente redistributivas) desceu quase para os 40%, mas, entretanto, não só regressou já a valores superiores a 75%, como voltará aos 90% ao longo do século XXI se r continuar a ser (como é hoje) cerca de 5% e g continuar a ser (como é hoje) apenas cerca de 1%. “O passado tende a devorar o futuro”...

III. O significado político, mas também ético, sociológico e filosófico, da ideia principal do livro de Piketty é, por conseguinte, óbvio: se o capitalismo tende a ser patrimonial e a gerar uma sociedade de herdeiros extremamente desigual, então o capitalismo tende a ser tudo menos uma meritocracia, o capitalismo tende a distribuir a riqueza e o rendimento de uma forma que é intrinsecamente (ou sistemicamente) injusta, toda a sociedade capitalista tende a ser uma plutocracia e a tornar-se materialmente incompatível com a democracia (mesmo que, formalmente, não se verifique tal incompatibilidade).

Que seja esta a principal conclusão a que o livro conduz, talvez explique por que razão a sua primeira edição em França teve um impacto incomensuravelmente menor do que o impacto da sua tradução e publicação nos Estados Unidos da América. A crença numa ligação intrínseca entre meritocracia, capitalismo e democracia é o alfa e o omega do sonho americano. A tese de que essa ligação intrínseca não existe é, provavelmente, menos chocante em França — tal como é provável que, à medida que se desce do centro para o sul da Europa, cresça a convicção de que o capitalismo tem uma natureza patrimonial.

Só que, aqui, é preciso ter cuidado e não atribuir a Piketty uma concepção   determinista do capitalismo. O mecanismo r > g é apenas um padrão histórico, não é um mecanismo inalterável. O new deal nos EUA e o modelo social europeu no pós-guerra mostram, historicamente, como a adopção de políticas fortemente redistributivas contraria a dinâmica patrimonial, r > g; a liberalização, desregulação, financiarização e globalização dos últimos 35 anos mostram que o regresso dessa dinâmica patrimonial resultou de profundas alterações institucionais — e assenta, portanto, em estruturas institucionais que são alteráveis.

É igualmente importante sublinhar que, ao contrário do que sustentam vários críticos, Piketty não é marxista. O seu livro não propõe um sistema alternativo ao capitalismo, nem prevê que venha a existir um tal sistema alternativo. Na verdade, Piketty defende que um determinado grau de desigualdade, bem como de competição em mercados regulados, é fundamental para que haja a inovação e o desenvolvimento tecnológico capazes de proporcionar os níveis de satisfação material alcançados em países como a França ou a Alemanha.  O facto de a riqueza acumulada de um dado país ser cerca de 600% do seu PIB é, em si mesmo, uma coisa boa, e não uma coisa má. O problema está na distribuição ou repartição desigual dessa riqueza acumulada. É ela que é injusta e que, em última análise, gera pobreza e põe em causa a existência de uma classe-média forte, como aquela que se formou depois de 1945 nos países que adoptaram o modelo social europeu. É também o tipo de repartição desigual existente hoje num país como a França ou os EUA (mas não o sistema de produção) que, aos poucos, vai retirando aos Estados os recursos necessários para um investimento em saber, ciência e tecnologia capaz de gerar crescimento económico robusto e instituições democráticas saudáveis.

Portanto, o problema, da perspectiva de Piketty, é muito claro: (1) não há uma alternativa credível ao capitalismo, (2) o capitalismo é, na verdade, um factor de desenvolvimento e criação de riqueza, mas (3) só proporciona taxas elevadas de crescimento económico em períodos de recuperação (“catching up”, “rattrapage”) e/ ou de grande crescimento populacional e inovação tecnológica — por isso, (4) no momento actual está plenamente instalada a dinâmica patrimonial do r > g e (5), se nada de radical for feito nos próximos anos, é só uma questão de tempo até voltarmos a ter, nos países mais desenvolvidos, níveis de desigualdade tão grotescos, injustos, anti-democráticos e auto-destrutivos como os da Belle Époque.

Qual é, porém, a plausibilidade deste discurso sobre o futuro? Na medida em que, como se disse acima, o mecanismo r > g depende de estruturas institucionais alteráveis e, na realidade, é apenas um padrão que se verifica empiricamente na história — ou seja, não é um “modelo” nem uma verdade a priori —, é evidente que todas as previsões de Piketty sobre as próximas décadas são condicionais (por exemplo, “se r se mantiver nos 5% e g no 1%, então...”). Mas nem por isso deixam de ser extremamente plausíveis. Primeiro porque os número de Piketty demonstram que, com a liberalização, desregulação, financiarização e globalização dos últimos 35 anos, se desenvolveram múltiplos instrumentos de investimento que garantem, em média e no longo prazo, uma taxa de retorno na ordem dos 5% (em termos reais), ou até bastante acima disso; depois porque, excepto no caso de países que têm pela frente um processo de rattrapage (como, por exemplo, a China), não se vislumbra, de facto, como se daria o regresso a taxas de crescimento do PIB de 4 ou 5%.

A única forma segura e eficaz de travar o mecanismo de acumulação patrimonial r > g consiste, portanto, em fazer diminuir o valor de r. A última parte do livro trata justamente do que, segundo Piketty, pode ser feito. A sua “utopia” (como lhe chama) é um imposto progressivo mundial sobre a riqueza. Idealmente, este imposto seria mundial porque, de outra forma, a globalização permitiria a fuga de capitais para offshores ou para quaisquer outros países que não participassem no plano de redistribuição da riqueza implicado na ideia desse imposto. Teria de ser também um imposto muito fortemente progressivo de modo a corrigir as enormes desigualdades entre, por exemplo, o 1% e os restantes 9% dos 10% mais ricos, bem como entre o 0.1% e os restantes 0.9% do 1% mais rico.   

 Esta última parte do livro termina com um capítulo sobre a dívida pública, no qual tem o devido destaque a crise das dívidas soberanas na zona euro. Esta crise, segundo Piketty, é um “estranho paradoxo”. Se é verdade que as dívidas soberanas dos países da zona euro tendem a ser hoje superiores a 90 ou mesmo a 100% do PIB, isso não significa, como muitas vezes se afirma, que esses países estejam a deixar para as gerações futuras uma dívida impagável — pois, tal como deixam dívida às gerações futuras, deixam-lhes também muita riqueza (privada) acumulada: entre 500 e 600% do PIB. Como pode “o continente onde os patrimónios privados são os mais elevados do mundo” ter um problema com as suas dívidas soberanas? Entre pedirem dinheiro emprestado aos privados (proporcionando-lhes “rendas” sob a forma de juros) ou cobrarem mais impostos (e impostos mais progressivos) sobre “os patrimónios privados mais elevados do mundo” (i.e., sobre a riqueza acumulada), o Estados europeus deviam escolher a segunda opção. Tal permitiria, primeiro, reduzir drasticamente (e muito rapidamente) as dívidas soberanas — e, depois disso, mutualizá-las a partir dos 60%. Segundo Piketty, o “estranho paradoxo” explica-se, portanto, em parte pela disfuncionalidade institucional do euro (pelo menos uma parte da dívida devia ser mutualizada, mas não há instrumentos institucionais para o fazer), em parte por a riqueza acumulada não ser devidamente taxada. (Quanto à austeridade como solução para se pagarem dívidas públicas elevadas, Piketty defende que “uma dose prolongada de austeridade” é “a pior solução, quer em termos de justiça, quer em termos de eficácia”).

Embora não o diga expressamente, Piketty parece considerar que os partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas cometeram um enorme erro histórico ao decidirem lutar apenas pela “igualdade de oportunidades” num quadro institucional em que as políticas redistributivas dos “30 anos dourados” deram lugar, a partir do final dos anos 70, à liberalização, desregulação, financiarização e globalização da economia. O problema aqui, note-se, é em boa parte filosófico — além de ser, evidentemente, político. Se, de facto, se verificar que tende a prevalecer no capitalismo o mecanismo de acumulação patrimonial, r > g, e que a sua prevalência hoje nos coloca na rota dos níveis de desigualdade da Belle Époque, então pode argumentar-se, no quadro do combate político, mas também no quadro do debate filosófico acerca da igualdade e da democracia, (1) que o actual sistema mina, por princípio, a igualdade de oportunidades, (2) que esse sistema gera, também por princípio, uma extrema desigualdade de resultados, (3) que a correcção desta desigualdade, nomeadamente por via de uma política fiscal fortemente redistributiva, é justa, e (4) que ela é necessária para a salvaguarda das instituições democráticas.

Thomas  Piketty escreveu, de facto, um livro que não interessa apenas a economistas, sociólogos, historiadores e filósofos, mas a toda a gente. E é também provável que Paul Krugman tenha razão: Thomas Piketty parece ter escrito “o livro da década”.

* Professor universitário

May 13, 2014 - New Yorker

Rebellious Economics Students Have a Point


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In case you missed it—and you probably did—there’s a revolt afoot in the universities. It’s not exactly Paris, 1968, but there is a significant, if small, movement, extending from New York and London to Rome and Tel Aviv, that’s determined to change the way economics is taught.

Echoing complaints that have been mounting in the economics world for at least twenty years, and which became louder after the financial crisis of 2008, the student rebellion is calling for a more pluralistic and diverse approach, rejecting the textbook methodology that all too often reduces economics to a set of mathematical exercises. “The real world should be brought back into the classroom, as well as debate and a pluralism of theories and methods,” a group called the International Student Initiative for Pluralism in Economics said, in an open letter that was posted online last week. “This will help renew the discipline and ultimately create a space in which solutions to society’s problems can be generated. United across borders, we call for a change of course.”

The protest group consists of more than forty associations of economics students from nineteen countries. Obviously, they represent only a tiny proportion of the over-all student body studying economics. But the group’s emergence reflects some concerns about the subject that have deep roots, and that many professional economists privately share. Back in 1996, I wrote a piece for the magazine entitled “The Decline of Economics,” in which I quoted a number of economists at big firms and business groups who complained that many of the economics graduates they hired, although technically proficient, had little knowledge of the actual workings of the economy. Over the years, this grousing has only increased. Particularly at the graduate level, economics students are obliged to spend so much time learning the relevant mathematical techniques and theories that they largely ignore economic history and economic organization.

In his book “Capital in the Twenty-first Century,” which I reviewed in March, Thomas Piketty, the economist of the moment, writes that after he obtained an economics doctorate, and spent several years teaching at M.I.T., “I was only too aware of the fact that I knew nothing about the world’s economic problems.” Piketty goes on, “To put it bluntly, the discipline of economics has to get over its childish passion for mathematics and for purely theoretical and often highly ideological speculation, at the expense of historical research and collaboration with the other social sciences.”

The student group agrees with Piketty. In the open letter, the students argue that an economics degree “should include interdisciplinary approaches and allow students to engage with other social sciences and the humanities.” But the students’ main beef is that, even within the subject of economics, the standard curriculum is overly restrictive, and excludes much that is valuable. The letter calls for students to be exposed to “a variety of theoretical perspectives, from the commonly taught neoclassically-based approaches to the largely excluded classical, post-Keynesian, institutional, ecological, feminist, Marxist and Austrian traditions—among others. Most economics students graduate without ever encountering such diverse perspectives in the classroom.”

That’s true, and it’s a serious problem. If you wanted to understand the roots of the financial crisis, you would have done better studying the Financial Instability Hypothesis of Hyman Minsky, a post-Keynesian, or the business-cycle theory of Knut Wicksell, one of the founders of the Stockholm school, than the standard neoclassical textbooks. But in the United States, at least, there is little sign that the basic economics curriculum is being overhauled. (Things are slightly different in the United Kingdom, where a serious effort to teach economics “as if the last three decades had happened” is under way.)

Facing widespread criticism following the financial crisis, the response of the U.S. economics profession was largely to ignore the complaints, and hope they would go away. To some extent, they have. In this country, at least, students still sign up for economics courses in large numbers, and the demand for graduates, particularly those with skills in mathematics and statistics, remains high. Anecdotal evidence suggests that many students still regard economics, unlike other social sciences, as a major that will help them secure a decent job.
Maybe it will. Technical expertise is valuable. Nobody should be allowed to graduate in economics without at least a rudimentary knowledge of statistics. Exposure to theories of finance, such as the capital asset pricing model, explains a good deal about Wall Street and the business world that would otherwise remain mysterious. But economics should surely aspire to more than providing foot soldiers for the financial industry and Big Data companies.

For all their concerns with their careers, many students go into economics with an idealistic presumption that it will help them understand, question, and change the world. The best economics programs seek to foster this sort of intellectual development, to be sure, but many of them have become increasingly narrow and arid. Economic-history courses were once standard; now they are much rarer. Courses in the history of economic thought and alternative approaches to economics were once pretty common; today, they are an endangered species.
The dissident student movement, which started out in Germany, spread across Europe, and includes a New York-based group of students from Columbia and the New School, doesn’t claim to have all the answers. “But we have no doubt that economics students will profit from exposure to different perspectives and ideas,” they write. “Pluralism could not only help to fertilize teaching and research and reinvigorate the discipline. Rather, pluralism carries the promise to bring economics back into the service of society.”

That last part sounds a bit grandiose. But it’s also got a ring of truth and hopefulness about it.


Image: Lucidio Studio, Inc./Getty.

segunda-feira, 7 de junho de 2010